O USO ANORMAL DA PROPRIEDADE
Iuli Ratzka Formiga (*) Dentre as normas que regulam o direito de vizinhança no Código Civil, encontramos uma seção que trata do uso anormal da propriedade. Uso anormal da propriedade é o mau uso, ou seja, o uso nocivo, o uso em desacordo com as regras da sociedade. De acordo com o princípio de que a minha liberdade termina onde começa a do outro, o Código Civil impôs restrições ao direito de propriedade, buscando harmonizar as relações sociais entre os proprietários e possuidores de prédios contíguos. Tais restrições decorrem de obrigações reais ou propter rem. Conforme a lição de Maximilianus Cláudio Américo Führer tais obrigações “situam-se numa zona cinzenta, entre o direito real e o direito obrigacional. Surgem como obrigações pessoais de um devedor, por ele ser titular de um direito real. Mas acabam aderindo mais à coisa do que ao seu eventual titular” (1). Assim, mesmo que a pessoa que morava no imóvel se mude para outro, quem passar a ocupá-lo deverá obedecer as mesmas regras. Exemplificando, se um morador da capital estava acostumado com a realização de festas até determinado horário, ao se mudar para uma pequena cidade do interior, o horário limite para a sua realização poderá ser outro. No estabelecimento dessas regras leva-se em conta a natureza da utilização, a localização do prédio, observando-se as normas de zoneamento, bem como os limites de tolerância dos moradores da vizinhança (Código Civil, parágrafo único, art. 1.277). A aferição desse limite de tolerância baseia-se no critério do homo medius, homem normal. Por exemplo, se um vizinho resolve realizar uma festa de aniversário e ocasiona um barulho considerado normal para o padrão médio das pessoas, o seu vizinho que não suporta música com volume alto, não pode impedi-la. Na esteira do magistério de Santiago Dantas, “o efeito nocivo que uma interferência qualquer produz sobre os vizinhos varia de caso para caso, conforme as circunstâncias particulares. O que a um apenas incomoda, a outro causa verdadeiro dano, e a um terceiro talvez não seja sequer desagradável. Os exemplos são numerosos: as trepidações que abalam o edifício vizinho não trazem o menor dano às lavouras; a doença de nervos de alguém torna-lhe insuportáveis os ruídos que outros tolerariam sem dificuldade. Se decidíssemos do caráter prejudicial de uma interferência, consultando apenas os efeitos que in concreta ela produz, não só chegaríamos aos resultados mais anti-sociais, como introduziríamos a insegurança nas relações entre vizinhos, deixando à mercê do capricho dos reclamantes a sorte das atividades profissionais que os molestam”. (2) Sobre a questão do barulho excessivo citada anteriormente, seguem algumas decisões judiciais proferidas pelos juízes do 2º Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo, ainda na vigência do antigo Código Civil. Direito de vizinhança - Uso nocivo de propriedade - Abuso de instrumentos sonoros e sinais acústicos - Irrelevância da inexistência da intenção de prejudicar ou incomodar - Fixação de horário para cessação das atividades musicais do restaurante, sob pena de multa diária - Aplicação do art. 554 do Código Civil - Recurso improvido. O abuso de instrumentos sonoros e sinais acústicos em restaurante até altas horas da noite, perturbando o sono, o sossego, ou o bem-estar dos vizinhos, caracteriza uso nocivo de propriedade, ainda que inexista a intenção de prejudicar ou incomodar, justificando a aplicação da regra do art. 554 do Código Civil, com fixação de horário para a cessação das atividades musicais no estabelecimento comercial. (2º TACivSP - 2º Câm.; Ap. s/ Rev nº 525.197-00-0-Presidente Venceslau; Rel. Juiz Gilberto dos Santos; j. 31/8/1998; v.u.) LEXTAC 174/550 (3) Direito de vizinhança - Ação de obrigação de fazer - Barulho proveniente de quadra poliesportiva - Construção de muro. Se o ruído causado pelo uso de uma quadra poliesportiva de edifício supera o permitido pela legislação municipal, está caracterizado o uso nocivo da propriedade e os vizinhos que se sintam perturbados podem compelir juridicamente o condomínio a construir muro de alvenaria com o objetivo de barrar a propagação do som. Direito de vizinhança. Coisa julgada. Inocorrência. Acordos homologados no Juizado Informal de Conciliação exprimindo mera intenção de resolver questão relacionada com barulho ambiental não impedem o ajuizamento de ação de obrigação de fazer, sobretudo em se tratando de relação continuativa, como a de vizinhança. (2º TACivSP - 5º Câm.; Ap. s/ Rev . nº 517.231-00/1-SP; Rel. Juiz Dyrceu Cintra; j. 29/7/1998; v.u.) LEXTAC 173/524 (4) Direito de Vizinhança - Obrigação de fazer - Estabelecimento comercial - Excesso de ruído - Observância dos limites da legislação municipal - Irrelevância - Realização de obras para diminuição do som e vibrações - Admissibilidade. Mesmo que os ruídos produzidos por estabelecimento comercial estejam dentro dos limites máximos permitidos pela legislação municipal, havendo prova pericial de que os mesmos causam incômodos à vizinhança, aquele que explora a atividade causadora da ruidosidade excessiva e vibrações mecânicas é obrigado a realizar obras de adaptação em seu prédio, com o objetivo de diminuir a sonoridade e as vibrações que prejudicam os prédios lindeiros. (2º TACivSP - 5º Câm.; Ap. c/ Rev. nº 548.842-00/0-SP; Rel. Juiz Pereira Calças; j. 10/8/1999; v.u.) LEXTAC 179/414. (5) De acordo com o artigo 186 do Código Civil, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Complementando este conceito, o artigo 187 dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou •••
Iuli Ratzka Formiga (*)