A PENHORA E A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. O QUE PODE SER PENHORADO?
A alienação fiduciária sempre constituiu tema de inspiração para controvérsias. Orlando Gomes1 , a exemplo, alude que “a alienação fiduciária em garantia, tal como se acha legalmente esquematizada entre nós, tem provocado desencontro de interpretações e controvérsias acadêmicas em quase todos os pontos atacados pela doutrina. Censura-se sua denominação, tergiversa-se na determinação de sua origem, vacila-se na sua conceituação, na fixação dos elementos da relação jurídica, na determinação do conteúdo e definição de natureza jurídica”. Não obstante, o instituto vige firme e retumbante e continua a desafiar a compreensão dos doutos sobre seus limites, sua extensão, suas multifacetas, suas implicações e sua enorme capacidade de ser adaptado para suprir o direito daquilo que necessita para atender às necessidades sociais. Melhim Chalhub2 bem demonstrou o poder mutante do instituto ao discorrer sobre ele desde o Direito romano (alienação fiduciária), passando pelo Direito anglo-saxão (na forma do trust), pelo Direito hispano-americano (fideicomisso) até ser recepcionado no Direito pátrio em suas multiformas (fideicomisso, alienação fiduciária de bem móvel e, mais recentemente, de bem imóvel). A alienação fiduciária de bem imóvel, por si só, revela-se instituto a despertar ainda muitas digressões doutrinária e jurisprudenciais, visto ser dotado de mecanismo ímpar em nosso sistema jurídico, envolvendo a constituição da propriedade fiduciá-ria, da propriedade resolúvel, da intimação e purgação da mora no Registro de Imóveis, do leilão extrajudicial, da ampla possibilidade de circulação dos direitos do fiduciante e do fiduciário, da possibilidade de ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, integrante ou não do SFH, dentre muitos outros aspectos que se revelarão à medida que o instituto for sendo amplamente utilizado e as questões envolvendo o instituto receberem a atenção de advogados e magistrados. Não ficarão de fora destas questões, evidentemente, e principalmente, os oficiais de Registro de Imóveis, visto que o instituto nasce e morre no Registro de Imóveis, qualquer que seja o desenrolar do contrato e sempre que os direitos do fiduciante e do fiduciário forem afetados de qualquer modo, seja por ação dos próprios atores do contrato, seja por ação de terceiros em procedimento judicial, seja no Juízo das Sucessões por óbito dos contratantes, pessoas físicas, seja no Juízo das Falências, enfim. Exemplo disso é a recente questão trazida à baila pelo arguto e insigne Sérgio Jacomino3 , no Boletim Eletrônico IRIB de 06/01/2006, envolvendo apreciação da registrabilidade de penhora de imóvel alienado fiduciariamente, tendo o competente registrador entendido que essa pretensão violaria o princípio da continuidade, uma vez que entende pertencer o imóvel ao fiduciário, e não ao fiduciante. O assunto mereceu também a atenção do festejado e culto advogado fluminense, Dr. Melhim Namem Chalhub4 , que no Boletim Eletrônico IRIB, de 31/01/2006, teceu considerações sobre o mesmo tema. Ambos entenderam pela viabilidade do registro da penhora desde que esta se dirija à constrição de direitos, seja do fiduciante, seja do fiduciário, e não do imóvel diretamente, por entenderem que o fiduciante é mero detentor de direitos expectativos (Jacomino) ou suspensivos (Chalhub), e que o fiduciário é titular do direito de crédito, garantido da propriedade fiduciária, os quais são “direito de conteúdo econômico, direito atual disponível”, etc, com o que concordo inteiramente, sem que isso seja necessário. Porém, cremos ser possível acrescentar algo mais acerca dos direitos do fiduciante passíveis da constrição judicial, pois, não obstante a relevância das ponderações dos eminentes articulistas, não me pareceu conclusiva a definição dos direitos do fiduciante, e, como consectário, do fiduciário, pois num ponto se diz que o fiduciário é titular de uma propriedade resolúvel, e noutro se diz que os direitos penhoráveis do fiduciário são o seu crédito, e que na hipótese de execução da penhora, o exeqüente se sub-roga, por força da lei (art. 29), na propriedade fiduciária. De outro lado, diz-se que os direitos penhoráveis do fiduciante são o seu “direito expectativo” à aquisição da propriedade (Jacomino), ou a sua “propriedade suspensiva” (Melhim), uma vez que a lei autoriza o fiduciante “ceder” direitos sobre o imóvel (art. 28). Analisando os direitos do fiduciante e do fiduciário É certo que a doutrina clássica, seguida pela moderna - não obstante as controvérsias apontadas por Orlando Gomes -, e a Jurisprudência têm entendido à luz do negócio fiduciário regulado no Decreto-lei nº 911/69 (alienação fiduciária de bem móvel), que o fiduciário é titular da propriedade resolúvel, ficando o fiduciante com um direito expectativo ou suspensivo sobre o bem, conforme a corrente doutrinária adotada. No entanto, uma vez que a alienação fiduciária de bem imóvel tem configuração própria em lei especial, seria o caso desses conceitos serem transplantados automaticamente para o negócio fiduciário de bem imóvel? Por exemplo: será que a Doutrina e a Jurisprudência5 pacificadas em relação à alienação fiduciária do Decreto-lei nº 911/69 podem ser aplicadas, sem retoques, à alienação fiduciária da Lei nº 9.514/97? Têm as duas modalidades de alienação fiduciária a mesma configuração? Os magistérios irretocáveis de Orlando Gomes, Caio Mário e Moreira Alves sobre alienação fiduciária, que não fazem referência à alienação fiduciária da Lei nº 9.514/97, podem a ela serem aplicados sem ressalvas? São as legislações da alienação fiduciária de coisa móvel e de coisa imóvel idênticas? Comparemos alguns artigos: Decreto-lei nº 911/69. Art 1º O artigo 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, passa a ter a seguinte redação: “Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal. Lei nº 9.514/97. Art. 22 A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. Art. 23 [...] Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel. Art. 24 - O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: [...] V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária. Decreto-lei nº 911/69 – Art. 1º “Art. 66 [...]; § 8º O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2º, inciso I, do Código Penal” (venda de coisa alheia como própria). Lei nº 9.514/97 - Art. 29. O fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações. A comparação acima, parece apontar algumas distinções •••
Valestan Milhomem da Costa (*)