GEORREFERENCIAMENTO DE IMÓVEIS RURAIS – CONCEITO DE UNIDADE IMOBILIÁRIA
“(...) rotina para padronizar os procedimentos na análise das peças técnicas pelos Comitês de Certificações dos Estados, em que um dos aspectos a serem observados é com relação a matrículas que estão seccionadas por ferrovias ou por estradas municipais, estaduais ou federais (...) como deveriam ser elaboradas as peças técnicas para possibilitar seu posterior ingresso no registro público imobiliário. (...) parecer referente a situação dos córregos, rios e hidrovias, tanto na hipótese de estes estarem localizados no interior do imóvel (interceptando-o) ou numa de suas divisas/confrontações. Os imóveis que se enquadram nessa situação deverão gerar glebas distintas para ambos lados tendo como limite a faixa de domínio público, independentemente se houve ou não desapropriação? Cada uma dessas glebas será descrita numa matrícula autônoma?” Introdução Trata-se de consulta formulada pelo Incra com o intuito de esclarecer um ponto de grande importância para a execução do programa de georrefe-renciamento de imóveis rurais, que é a definição da “unidade imobiliária rural”, porque, sem a determinação de um sólido marco jurídico, os geo-mensores não saberão como proceder para que seus trabalhos técnicos estejam aptos tanto para o sistema cadastral do Incra como para o fiel cumprimento da Lei de Registros Públicos. Visando a facilitar a compreensão e a tornar o texto menos cansativo, o termo “georreferenciamento” foi utilizado neste parecer como “o integral cumprimento da legislação em vigor visando à obtenção da certificação do Incra e posterior ingresso na matrícula”, e não como uma mera técnica de agrimensura. Com o mesmo objetivo, foi denominado “geomensor” o profissional devidamente habilitado e credenciado para a elaboração dos trabalhos técnicos. 1. Conceito de Imóvel Rural Afinal, o que é um imóvel rural? Essa é a questão que está causando dúvidas em todo o Brasil devido a um equívoco que, mesmo pequeno, gera sérias repercussões. O equívoco está exatamente na divergência sobre o conceito de imóvel rural. Questiona-se se o imóvel rural é a unidade econômica agropastoril constante do cadastro do Incra, a unidade descrita na matrícula ou, até mesmo, se é a área englobada na declaração do ITR. Esse problema de interpretação ocorre porque compete ao Incra efetuar o cadastro rural, fiscalizar a correção dos trabalhos georreferenciados e, principalmente, porque também é sua a missão de emitir a certificação de que os vértices do imóvel georreferenciado não invadem a área de outro imóvel rural certificado. E, para o Incra, imóvel é, e sempre foi, a unidade econômica rural. Torna-se necessário, portanto, analisar a divergência para, depois, dirimir esse equívoco. Imóvel, pela lei civil, é “o solo e suas acessões”. Apenas e tão-somente isso. Código Civil – Lei nº 10.406/2002: Art. 79 - São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. Sob esse prisma, poderiam ser considerados unidades imobiliárias um país inteiro, um município, uma fazenda ou até mesmo uma diminuta área delimitada por uma cerca de arame. Não existem normas para definição dessa “unidade” e nem será possível criá-las, por total inviabilidade técnica e, até mesmo, prática. Portanto, não há e nem será possível haver uma regra geral, quer técnica ou jurídica, que defina a “unidade imobiliária” de forma a atender todas as atuais necessidades públicas ou privadas. O Estatuto da Terra, legislação diretamente ligada às atividades específicas do Incra, define o que vem a ser imóvel rural. Apesar de não-muito esclarecedor seu texto (há inclusive divergências sobre sua abrangência), uma coisa está bastante clara na norma legal, que esse conceito vale apenas “para os efeitos dessa lei”. Estatuto da Terra – Lei nº 4.504/64: Art. 4º - Para os efeitos desta Lei, definem-se: I - Imóvel Rural, o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada. Segundo o que se extrai desse conceito legal, o imóvel rural: a) deve possuir potencial para exploração agropecuária, agroin-dustrial ou extrativista; b) não perde sua característica tão-somente por estar localizado no perímetro urbano; e c) deve ter área contínua (eis aqui um outro foco de divergência). Portanto, a legislação agrária enfatiza aquilo que está diretamente ligado aos seus objetivos, que é a característica rural do imóvel, em que o incentivo, a regulação e o controle da produtividade agropecuária e agroindustrial reflete diretamente na economia e no desenvolvimento do país. O controle efetuado pelo Estado sob o aspecto agrário não depende diretamente das informações sobre a titularidade, os ônus reais eventualmente existentes ou a forma e os valores das transações no comércio imobiliário, mas sim do potencial produtivo da terra, com o intuito de incentivar o desenvolvimento desse importante setor econômico, promover o assentamento de famílias em busca de sua dignidade e, também, identificar as terras não aproveitadas e desapropriá-las para fins de reforma agrária (missão do Incra). Dessa forma, é comum um imóvel rural cadastrado no Incra ser formado por uma pluralidade de matrículas ou transcrições (ou seja, são várias propriedades rurais) ou ainda por áreas não tituladas (áreas de posse). Esse fato nunca atrapalhou os objetivos funcionais da autarquia, haja vista não serem relevantes, até então, as informações quanto à titularidade ou aos ônus reais que pesam sobre os imóveis. Por esse motivo, o cadastro do imóvel rural nunca precisou coincidir exatamente com a propriedade rural (que é representada pela matrícula), bastando que esse “imóvel rural” a ser incluído no cadastro se encaixasse no conceito na legislação agrária. Para o Registro de Imóveis, o que vem a ser “unidade imobiliária”? Apesar da singela definição de bem imóvel, o Código Civil reservou vários dispositivos com potencial suficiente para esclarecer o assunto. Disciplinou com tradicional rigor os direitos reais sobre bens imóveis e condicionou a aquisição desses direitos ao prévio registro público imobiliário. Código Civil – Lei nº 10.406/2002: Art. 1.227 - Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (artigos 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. O registro público imobiliário cuida essencialmente do registro dos direitos reais imobiliários, abrangendo desde o maior deles, a propriedade, aos demais direitos reais previstos em lei, como o usufruto e a hipoteca. Código Civil – Lei nº 10.406/2002: Art. 1.225 - São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese. Da atenta leitura do Código Civil, extraem-se as seguintes informações: a) bem imóvel corresponde ao solo e o que a ele se incorporar; b) os direitos reais sobre imóveis incluem o direito de propriedade; e c) os direitos reais são registrados no Cartório de Registro de Imóveis. A Lei nº 6.015/73, a Lei dos Registros Públicos (LRP), complementa essas regras, estabelecendo os princípios informadores do sistema registral imobiliário e disciplinando a forma e o procedimento para o registro dos direitos reais. Alguns de seus dispositivos são importantes para melhor compreender sua sistemática, dispostos a seguir numa ordem mais didática: Lei dos Registros Públicos – Lei nº 6.015/73: Art. 227 - Todo imóvel objeto de título a ser registrado deve estar matriculado no Livro nº 2 - Registro Geral - obedecido o disposto no artigo 176. Art. 236 - Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir esteja matriculado. Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro geral - será destinado à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no artigo 167 e não atribuídos ao Livro nº 3. §1º - A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: I - cada imóvel terá matrícula própria, que será aberta por ocasião do primeiro registro a ser feito na vigência desta lei; II - são requisitos da matrícula: 3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação: a - se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; b - se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, nº e de sua designação cadastral, se houver. §§ 3º e 4º - …“imposição do georreferenciamento dos imóveis rurais”. Esses dispositivos da Lei de Registros Públicos conduzem às seguintes conclusões: a)todo imóvel possui uma única matrícula e toda matrícula se refere a um único imóvel (princípio da unitariedade da matrícula); b)na matrícula deve haver a completa identificação do imóvel, que engloba uma descrição técnica que deve seguir as regras da agrimensura (princípio da especialidade objetiva); e c)nas hipóteses legais, essa descrição técnica deve cumprir as novas regras do “georreferenciamento”. Diante do exposto, a unidade imobiliária possui dois conceitos distintos: a) para o Incra: unidade econômica rural, englobando áreas registradas e áreas de posse; e b) para o Registro de Imóveis: a matrícula, ou seja, a “propriedade imobiliária” juridicamente constituída. Afinal, qual dessas interpretações deve prevalecer? 2. A inutilidade do aspecto quantitativo de imóveis rurais Em muitas ocasiões, houve estimativas sobre a quantidade de imóveis rurais que estariam fora do registro público. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, elaborou um projeto intitulado “Programa de Cadastro de Terras e Regularização Fundiária do Brasil”, datado de 31/5/2005, em que relata o panorama da situação fundiária do país. Nesse estudo, há uma tabela efetuada com base no cadastro do Incra, que traz a informação de que o Brasil possuía 4,56 milhões de imóveis rurais, sendo 1,5 milhão sem titulação (33% do total). Costuma-se dizer que a matemática é uma ciência exata e que seus resultados são inquestionáveis. Neste caso em particular, o problema não está nos cálculos, mas sim no método escolhido de apuração, que falhou na definição do objeto, considerado unidade, para a geração dos resultados. Mesmo que fosse possível definir a unidade imobiliária e até mesmo facilmente quantificado o número de imóveis, o que representaria essa estatística? que fim prático teria ela? Na verdade, nenhum. Vamos analisar esse desacerto primeiramente sob o enfoque da produtividade rural, em que uma boa estatística é fundamental para a definição de políticas públicas. A hipótese compara dois supostos municípios de mesma área territorial (utilizando dados do IBGE) e com a mesma quantidade de imóveis rurais (utilizando os dados cadastrais do Incra). Método 1: mera quantificação de imóveis rurais Município A: – total de imóveis rurais: 2.000 – total de imóveis improdutivos: 40 – imóveis rurais prejudiciais: 2% Município B: – total de imóveis rurais: 2.000 – total de imóveis improdutivos: 300 – imóveis rurais prejudiciais: 15% Numa primeira análise, o Município B possui um problema bem maior que o outro município, merecendo, portanto, uma maior atenção do Governo. Entretanto, ao analisar o caso de forma mais realista, verifica-se que o problema não está no Município B, sendo de maior complexidade a situação do outro município. Método 2: avaliação do espaço territorial Município A: – total de área rural: 40.000 ha (há 2.000 imóveis rurais) – total de área improdutiva: 26.000 ha. (área ocupada por 40 grandes latifúndios) – área rural improdutiva: 65% Município B: – total de área rural: 40.000 ha (há 2.000 imóveis rurais) – total de área improdutiva: 1.200 ha. (área ocupada por 300 minifúndios) – área rural improdutiva: 3% O Município B tem apenas 3% de seu território rural não aproveitado, ao passo que mais da metade da área rural do outro município não está cumprindo sua função social de colaborar para o desenvolvimento do país. A estatística apresentada no programa elaborado pelo BID diz haver 4,5 milhões de imóveis rurais no Brasil, sendo 1,5 milhão sem titulação. Como se chegou nesse total de 4,5 milhões? Se foi pelo cadastro do Incra, cuja unidade imobiliária não coincide com a matrícula (unidade titulada), como foi possível o cálculo dos imóveis sem titulação, se os titulados depende da quantidade de matrículas? Não há como utilizar um mesmo método para coisas distintas. Além disso, é juridicamente impossível calcular a quantidade de propriedades imobiliárias não tituladas. Por não haver sua descrição no registro público imobiliário, a propriedade imobiliária inexiste, havendo apenas uma determinada extensão de terra sem reconhecimento jurídico. Mesmo que se utilize exclusivamente o cadastro rural do Incra, que engloba terras rurais tituladas e áreas de posse, ainda assim essa estatística não é representativa. Isso ocorre por uma série de fatores que, certamente, não é culpa nem do •••
Eduardo Agostinho Arruda Augusto (*)