A DOAÇÃO DA NUA-PROPRIEDADE, O USUFRUTO E O IMPOSTO DE TRANSMISSÃO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – ISENÇÃO OU INCIDÊNCIA DE ITCD NA ESCRITURA PÚBLICA?
1. INTRODUÇÃO No Estado do Rio Grande do Sul, ao longo de muitas décadas, houve isenção do imposto de transmissão de bens imóveis nas hipóteses de doação com reserva de usufruto, postergando-se o pagamento para o momento da extinção deste direito real, com a consolidação da propriedade em favor do nu-proprietário, quer por morte do doador, quer por outra forma admitida em lei, mesmo até por renúncia, com a conseqüente consolidação da propriedade em favor do nu-proprietário. No tocante a renúncia de usufruto, era ela admitida pela doutrina e jurisprudência pátrias, pois não estava arrolada entre as causas de extinção na vigência do Código Civil de 1916, o que veio ocorrer somente com a entrada em vigor do novo diploma – Lei 10.406/2002, dispondo, no artigo 1.410, que o usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis, dentre outros modos também pela renúncia. Quanto ao imposto de transmissão, inicialmente conhecido pela sigla SISA, depois ITBI, a significar o imposto de transmissão de bens imóveis, era, até a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, de competência exclusiva dos Estados, não importando fosse a transmissão a título gratuito ou oneroso, ou mesmo em decorrência da morte do proprietário. Hodiernamente, pela nova carta magna, a competência legislativa e de cobrança foi alterada, mantendo-se o ITBI apenas para os atos de transmissão onerosa de imóveis, competindo aos Municípios legislar acerca do tributo e cobrá-lo, enquanto que para os atos gratuitos ou originados em razão da morte (herança), a competência se manteve com os Estados, passando a designar-se Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações, conhecido no Rio Grande do Sul como ITCD, e em outros Estados, como São Paulo, ITCMD. A alteração trazida pela atual Constituição da República¹, no capítulo destinado ao Sistema Tributário Nacional, como referido, alterou a competência legislativa e de arrecadação, atribuindo aos Estados e ao Distrito Federal instituir e cobrar o imposto sobre a transmissão “causa Mortis” e doação, de quaisquer bens e direitos, não somente imóveis, e aos Municípios a instituição e cobrança do imposto sobre a transmissão inter vivos, por ato oneroso, e diferentemente dos casos de gratuidade ou em razão de herança, exclusivamente na trans-missão de bens imóveis. 2. LEGISLAÇÃO DO ITCD Com fundamento na nova ordem constitucional, foi editada e passou a vigorar, no Rio Grande do Sul, a Lei nº 8.821, de 27 de janeiro de 1989, conhecida como Lei do ITCD, mantendo a isenção do tributo para as doações da nua-propriedade, estabelecendo no art. 7º, V, ser isenta do imposto a transmissão do domínio direto ou da nua-propriedade de bens imóveis², tendo essa prerrogativa, favorável ao contribuinte, se estendido até a edição da Lei Estadual nº 11.074, de 30 de dezembro de 1997, que alterou a Lei do ITCD. As modificações produzidas na legislação específica trouxeram nova redação ao dispositivo citado, no sentido de fulminar a isenção na transmissão da nua-propriedade, embora mantida na transmissão do domínio direto. No comparativo entre o anterior e o atual texto, vai se verificar ter havido supressão da parte final do inciso V do art. 7º, ficando excluídas, além da expressão “nua-propriedade”, também “bens imóveis”³ No tocante a ter havido exclusão dessa última expressão agiu com acerto o legislador, uma vez que pelo citado preceito constitucional o imposto de transmissão, a título gratuito ou causa morte, de competência estadual, abrange não somente os bens imóveis, mas sim a totalidade do patrimônio transmitido, até mesmo em se tratando de bens móveis, e inclusive dinheiro. Impunha-se, portanto, a correção. Por outro lado, alterada a norma também com a supressão da expressão “nua-propriedade”, com o objetivo de fulminar a postergação do recolhimento do imposto em tais casos, e mesmo que, sem discussão de mérito, tenha ela surtido efeitos práticos de imediato, pelo entendi-mento literal que seu deu ao artigo modificado, cabe questionar a sua eficácia jurídica, considerando a correta interpretação legislativa: se de fato está o contribuinte obrigado, por força da lei, a antecipar o pagamento do tributo, ou se as modificações introduzidas não tiveram o condão de alcançar o objetivo pleiteado pelo legislador, uma vez considerado o contexto legal, e não apenas pela interpretação isolada do artigo. É comezinho que a lei não pode ser interpretada em tiras, senão como um conjunto de regras postas em harmonia entre si, como elos dispersos de uma mesma corrente. A fim de alcançar o objetivo no caso trazido à discussão, é necessário basicamente que se apure, nesse contexto, o real significado da expressão “domínio direto”, cuja transmissão permanece isenta do imposto, nos termos da lei. Para tal mister, aparentemente de difícil deslinde, não é suficiente a leitura perfunctória dos dispositivos, senão por outro lado se fazendo um estudo mais detalhado do complexo sistema jurídico, adentrando-se especialmente nos campos de direito civil, tributário, administrativo e constitucional, e passando necessariamente pelo conhecimento de certos conceitos e seus reflexos na nomenclatura dos dispositivos pertinentes, dentre eles o que sejam propriedade, plena e bi-partida; domínio, útil e direto; e usufruto, por instituição e por dedução, e especialmente a eventual sinonímia existente entre as expressões “domínio direto” e “nua-propriedade”. 3 – ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO DO ITCD O legislador efetivamente buscou excluir a isenção do tributo para as hipóteses de doação da nua-propriedade, como se pode verificar pela simples leitura do projeto de lei4 que redundou em aprovação, preconizando que ... Propõe, ainda, a exclusão da isenção na transmissão da nua-propriedade de bens imóveis, que geralmente ocorre na doação e é um ato de liberalidade do doador. Portanto não faz sentido o benefício da postergação do pagamento do imposto para o momento da extinção do usufruto... Afora pecar pela falta de melhor técnica legislativa e compreensão quanto ao alcance do imposto na transmissão do patrimônio, o texto padece de vício de inconstitu-cionalidade, uma vez que o benefício da postergação, a que se refere, origina-se de lei de hierarquia superior. Senão veja-se as disposições contidas no Código Tributário Nacional5, em especial nos artigos 116 e 117, estabelecendo que o fato gerador somente ocorre, tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, sendo que os atos jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados, sendo suspensiva a condição, como é o caso da doação com reserva de usufruto, desde o momento de seu implemento, qual seja, cessada a condição. Embora não constitua objeto do presente estudo, cumpre salientar que incorre em inconstitucionalidade a lei quando estabelece alíquota progressiva para o imposto, tendo já o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vedado progressividade do tributo6, por entender que este não mensura e nem é expressão de capacidade contributiva dos contribuintes, e, segundo o Eminente Relator, Desembargador Genaro Baroni Borges, “como imposto real que é, não comporta a progressão, só possível nos impostos pessoais, nos termos do art. 145, § 1º da Constituição Federal de 1998”. Mas, embora as inconstituciona-lidades que se demonstram, o trabalho ora desenvolvido busca por outra seara, por outro ângulo, por outro foco, fazer o exame da Lei 8.821/89, no sentido de verificar se afora os vícios no campo constitucional, também a melhor interpretação do texto pode levar ao entendimento de isenção do imposto para as hipóteses de doação da nua-propriedade. O que se pretende efetivamente esclarecer é se a doação da nua-propriedade continua ou não isenta do imposto de transmissão, conforme a melhor hermenêutica, ainda que tenha a legislação sofrido alterações que objetivaram o fim da postergação do tributo para o momento da consolidação, e na prática o tributo seja exigido antecipadamente. Como visto, a lei passou a estabelecer isenção do imposto somente na transmissão do domínio direto, tendo suprimido a expressão “nua-propriedade”. Para uma melhor compreensão, faz-se necessário esclarecer então o que seja domínio direto, especialmente a diferença ou a sinonímia existente entre nua-propriedade e domínio direto, considerando-se primeiramente cada qual de forma isolada, e num segundo momento fazendo-se o cotejo quanto ao significado dos termos dentro do contexto normativo, nos casos de doação com reserva de usufruto, passando necessariamente por conceitos outros, como se perceberá ao longo das digressões lançadas. É imperioso que o intérprete conheça os diversos efeitos trazidos à propriedade pelo usufruto, seja na instituição ou na reserva do direito. 4 - CONCEITOS Propriedade, para Maria Helena Diniz7 “(...) é direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como reivindicá-lo de quem injustamente o detenha...”. O revogado Código Civil brasileiro8 já trazia expresso o conceito de propriedade, e não é diferente o que se contém no código vigente9, com pequenas variações que em nada alteram a conceituação, expressando sempre a trilogia para a existência de propriedade: uso, gozo e disposição. Os conceitos de propriedade plena, trazidos pelos Códigos Civis, tanto o anterior quanto o atual, bem demonstram que propriedade, propriamente, somente existe quando há a reunião do uso, gozo e disposição, pois uma vez estando separados esses direitos, pela bipartição, com o fracionamento do domínio, a propriedade deixará de ser plena, ou “verdadeiramente propriedade”, surgindo em conseqüência a nua-propriedade. Corrobora nesse sentido a lição de Orlando Gomes10, quando leva em conta conceitos doutrinários para conceituar a propriedade em três dimensões: 1ª) O conceito sintético, que corresponde à submissão de uma coisa em todas as suas relações a uma pessoa. 2ª) O conceito analítico, com o direito de usar, fruir e dispor de uma coisa, e de reavê-la de quem quer que injustamente a possua. 3ª) O conceito descritivo, que abrange o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pela qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. Por qualquer ângulo que se estude propriedade, vai sempre se chegar a mesma conclusão: propriedade somente existe quando reunidos todos os seus elementos formadores. Faltando um que seja, não é propriedade, em seu conceito maior. Pelo conceito sintético, tem-se a submissão da coisa ao seu proprietário, único ou múltiplo, mas tratando sempre de propriedade em seu conceito maior, sem fraciona-mento do domínio. No analítico percebe-se, igualmente, a proprie-dade íntegra, pela conjunção dos poderes de usar, fruir e dispor, além do poder de reavê-la de quem injustamente a possua. E por fim, o conceito descrito, também a demonstrar que somente a plenitude da propriedade é efetivamente propriedade, pelo “direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo”. Nas hipóteses de desdobro, a propriedade deixa de ser exclusiva, e no caso estudado, doação da nua-propriedade, coexistem dois direitos, não mais havendo exclusividade em relação ao bem. De um lado o usufrutuário, que utiliza a coisa, possuindo a posse direta, e de outro o nu-proprietário, que pode dela dispor, embora não possa usá-la ou dela fruir, tendo mera posse indireta. Quanto ao domínio, Maria Helena Diniz11 o conceitua como: a) Propriedade; b) qualidade de proprietário; c) poder de dispor de algo como seu proprietário. Assim, propriedade e domínio parecem confundir-se como se a mesma coisa fossem, embora assim não seja. O proprietário pode usar, gozar e dispor da •••
José Hildor Leal (*)