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BDI Nº.5 / 2010 - Assuntos Cartorários Voltar

A INDISPONIBILIDADE DE BENS PRIVADOS COMO ATO DE CONSTRIÇÃO JUDICIAL E SEU ACESSO AO REGISTRO IMOBILIÁRIO

1. Definição de indisponibilidade. A propriedade plena confere ao seu titular o poder de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha. O direito de propriedade compreende, portanto, o uso, gozo e disposição da coisa: ius utendi, fruendi e abutendi. O poder de dispor representa a possibilidade de alienação da coisa, por qualquer de suas formas. O Código Civil de 2.002, assim como o de 1.916, dispõe que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (art. 1.228, caput). O direito de dispor, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira, “é a mais viva expressão dominial, pela maior largueza que espelha[1]”.   Não obstante atributo mais revelador do direito de propriedade, o poder de dispor pode sofrer restrições: legais, voluntárias, administrativas ou judiciais. As inalienabilidades decorrentes dos atos de vontade consistem na instituição do bem de família e na imposição da cláusula respectiva nos atos de liberalidade, por testamento ou doação (art. 1.911 do C.C.). O dispositivo legal citado estabelece que a inalienabilidade implica impenhorabilidade e incomunicabilidade, trazendo para a seara legislativa o que já estava assentado na jurisprudência, no verbete 49 da súmula do Supremo Tribunal Federal. A indisponibilidade decorrente de ato de liberalidade atinge, como se vê, tanto a disposição voluntária como a forçada. A instituição do bem de família acessa o fólio real por ato de registro em sentido estrito (art. 167, I, 1, da Lei 6.015/73), e a cláusula de inalienabilidade por ato de averbação (art. 167, II, 11, da Lei 6.015/73). Pode a inalienabilidade ser temporária ou vitalícia. A faculdade de dispor pode ser subtraída ainda por determinação legal, administrativa ou judicial; quanto a esta veremos a seguir discorrendo sobre o tema em debate, os atos de constrição judicial. Há discussões envolvendo o assunto, em especial quanto à possibilidade do magistrado decidir pela indisponibilidade sem amparo em específica previsão legal. Em apertada síntese, pode-se definir a indisponibilidade como a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma. Poderá ser temporária ou vitalícia, quando se cuidar de inalienabilidade por atos de vontade. Sendo legal, administrativa ou judicial, será essencialmente provisória, por não constituir um fim em si mesma. Em qualquer caso, não será absoluta. Não obstante a inalienabilidade e a indisponibilidade signifiquem restrição ao poder de dispor da coisa, usualmente tem se utilizado o termo inalienabilidade para as restrições decorrentes de atos de vontade, enquanto o termo indisponibilidade tem sido usado para se referir às restrições impostas pela lei, ou em razão de atos administrativos ou jurisdicionais. Diferença relevante assenta na finalidade: enquanto nos atos de vontade o que se busca atingir com a restrição é a proteção do beneficiário da cláusula (daquele que fica impedido de dispor), nos demais atos o objetivo, em regra, é dar efetividade a decisões administrativas e jurisdicionais, em desfavor de quem tenha alcançado seu poder de disposição. Apenas para ilustrar, pois estamos a tratar de bens particulares, registra-se que os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis por disposição legal, enquanto conservarem a sua qualificação (art. 100 do C.C.). A alienação de bens públicos dominiais depende da observância de exigências legais (art. 101 do C.C.). 2 - A legalidade da restrição judicial. Negar ao proprietário a possibilidade de dispor do bem, restringindo o exercício do direito de propriedade, caracteriza medida de exceção que deve ser utilizada com critério. Até mesmo quanto às restrições voluntárias o legislador inovou no Código Civil de 2.002, ao impedir que o testador estabeleça cláusula de inalienabilidade sobre os bens da legítima, salvo se houver justa causa (art. 1.848, caput) – a contrario sensu, não há proibição de imposição da cláusula quanto aos bens integrantes da metade disponível. A medida deve se restringir às hipóteses estritamente necessárias e não fere o direito de propriedade, desde que aplicada com observância do devido processo legal. O exercício do direito de propriedade sofre restrições várias, como é sabido (de natureza urbanística, ambiental, por exemplo), especialmente porque a propriedade atenderá a sua função social (art. 5o, XXIII, da C.F.), não estando afastada a possibilidade de retirada, provisoriamente, da faculdade de disposição do bem. A leitura isolada do inciso XXII do art. 5º da Carta Magna pode levar à açodada conclusão de que o legislador constituinte garantiu direito de propriedade sem qualquer possibilidade de restrição. Mas dentre os demais incisos do próprio art. 5º encontramos elementos que apontam em sentido diverso. O inciso XXIII reza que a propriedade atenderá a sua função social; o XXIV possibilita a desapropriação; a alínea b do inciso XLVI permite à legislação infraconstitucional a adoção da pena de perda de bens; e o inciso LIV autoriza a privação dos bens desde que observado o devido processo legal. Considerando ainda que o inciso XXXV do referido art. 5º assegura o acesso ao Poder Judiciário para apreciação de lesão ou ameaça a direito, parece-me que o decreto de indisponibilidade de bens, generalizada ou individuada, não malfere a Constituição quando assegurado ao titular do direito o devido processo legal, com contraditório e ampla defesa. Saliente-se que o § 4º do art. 37 do texto constitucional prevê indisponibilidade de bens em caso de improbidade administrativa. Acrescente-se que, se “pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor” (art. 391 do C.C. – de semelhante teor o art. 591 do C.P.C.) e que, como preceituado pelo art. 75 da revogada lei substantiva civil, “a todo o direito corresponde uma ação, que o assegura”, indispensável a existência de instrumentos para a efetivação das garantias jurídicas, dentre os quais podemos incluir as indisponibilidades de bens. Assim, interpretando sistematicamente a legislação vigente, entendo plenamente viável o decreto judicial de indisponibilidade, com acesso ao registro imobiliário, o que será objeto de tópico posterior. 3 - Previsões de indisponibilidade. Há na legislação pátria diversas previsões de indisponibilidade de bens. Eber Zoehler Santa Helena[2], abordando o tema das indisponibilidades, afirma: “por outro lado, tais limitações encontraram terreno fértil no campo das normas de direito público, em uma plêiade de dispositivos esparsos e por vezes contraditórios, em regra como instrumento acessório de medidas assecuratórias da efetividade de decisões tanto na esfera administrativa quanto na jurisdicional, determinando a suspensão cautelar da disponibilidade dos bens...”. O legislador tem criado frequentemente novas hipóteses de ocorrência de restrição da disponibilidade, as quais relacionaremos em ordem cronológica: 3.1 - Lei 5.172, de 25/10/66 (Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios) – A Lei Complementar 118, de 09/02/05, incluiu no Código Tributário Nacional o art. 185-A, de seguinte teor: “Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promoverem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial”. O §1º do referido dispositivo estabelece que a indisponibilidade limitar-se-á ao valor total exigível, devendo o juiz determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem esse limite. Impõe-se que haja decreto judicial e que, como medida de exceção, deva a indisponibilidade ser reduzida ao estritamente necessário. 3.2 - Lei 5.627, de 1º/12/70 (Dispõe sobre capitais mínimos para as Sociedades seguradoras e dá outras providências) – a previsão, in casu, é de indisponibilidade administrativa decorrente de decretação de regime de liquidação extrajudicial compulsória (parágrafo único do art. 2°: A indisponibilidade de que trata o presente artigo decorrerá do ato que declarar o regime da liquidação extrajudicial compulsória e atingirá todos aqueles que tenham exercido as funções nos 12 meses anteriores ao mesmo ato). 3.3 - Lei 5.869, de 11/01/73 (Institui o Código de Processo Civil) – a decisão judicial declaratória da insolvência civil tem como efeito tornar indisponíveis os bens do devedor, até a liquidação total da massa, nos termos do art. 752. 3.4 - Lei 6.024, de 13/03/74 (Dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, e dá outras providências) – os arts. 36 a 38 da lei enfocada tratam da indisponibilidade de bens dos administradores das instituições financeiras em intervenção, em liquidação extrajudicial ou em falência, decorrendo a indisponibilidade do ato que decretar a intervenção, a liquidação extrajudicial ou a falência e atingindo todos que tenham exercido funções de administração nos doze meses anteriores ao ato, podendo a indisponibilidade ser estendida a outras pessoas na forma do § 2º do art. 36. Em razão da indisponibilidade não se praticarão atos no registro imobiliário, nos termos do parágrafo único do art. 38. 3.5 - Constituição da República Federativa do Brasil, de 05/10/88 – Estabelece o art. 189: “Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos”. Adotando o termo “inegociáveis” a Carta Magna restringiu a possibilidade de disposição da coisa temporariamente, pelo prazo de dez anos. Sendo inegociáveis, os bens não podem ser objeto de negócios jurídicos, ou seja, os titulares do domínio deles não podem dispor, ainda que por prazo determinado. 3.6 - Lei 8.112, de 11/12/90 (Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais) – a aplicação de penalidade disciplinar tem como efeito, em alguns casos, provocar a indisponibilidade dos bens do servidor punido (Art. 136- “A demissão ou a destituição de  cargo em comissão, nos casos dos incisos IV, VIII, X e XI do art. 132, implica a indisponibilidade  dos bens  e o ressarcimento ao Erário, sem prejuízo da ação penal cabível”). 3.7 - Lei 8.212, de 24/07/91 (Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui o Plano de Custeio, e dá outras providências) – a lei em foco contém previsão de indisponibilidade de bens penhorados (§ 1º do art. 53). Os bens penhorados, em regra, não se tornam indisponíveis. As alienações são ineficazes em face da execução, por efeito do vínculo imposto sobre os bens pela penhora, mas não há indisponibilidade de bens. Na hipótese ventilada, criou a Lei 8.212/91 indisponibilidade legal dos bens penhorados em execução judicial da dívida ativa da União, suas autarquias e fundações públicas. 3.8 - Lei 8.397, de 06/01/92 (Institui medida cautelar fiscal e dá outras providências) – o art. 4º dispõe que a decretação da medida cautelar fiscal produz a indisponibilidade dos bens do requerido, de imediato, até o limite da satisfação da obrigação. A medida cautelar fiscal há de ser decretada judicialmente, nos termos do art. 5º. 3.9 - Lei 8.429, de 02/06/92 (Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e •••

Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (*)