DA POSSIBILIDADE (OU NÃO) DA EXTINÇÃO DA CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE DE BEM IMÓVEL CONSTITUÍDA POR MEIO DE DOAÇÃO OU TESTAMENTO
1. Introdução Prima facie, cumpre ressaltar que se trata de um tema que não é de interesse apenas para os que militam na área jurídica, mas também daqueles que são afeitos ao mercado imobiliário (corretores, agentes) e da população em geral. O presente texto tem como objetivo discorrer sobre a possibilidade, ou não, do cancelamento da cláusula de inalienabilidade sem a necessidade de sub-rogação, conforme determina o parágrafo único do art. 1911 do novel Código Civil. Em palavras diferentes, é juridicamente possível o juiz desonerar um bem gravado com a cláusula de inalienabilidade sem determinar que outro seja adquirido para substituí-lo ficando gravado com o mesmo ônus? Destaque-se que não desconhece o autor do presente trabalho o quão polêmica é a questão contida neste artigo, tendo em vista que muitos são os que entendem não ser possível, no ordenamento jurídico brasileiro, a autorização para o cancelamento da cláusula de inalienabilidade aqui tratada [01]. Com o escopo de garantir o bom entendimento da matéria abordada, faz-se mister uma ligeira abordagem de alguns institutos e conceitos jurídicos que darão suporte ao tema proposto. 2. Do Conceito de Cláusula de Inalienabilidade A cláusula de inalienabilidade, como bem retrata a sua terminologia, tem o propósito de vedar a alienação de determinado bem, sendo normalmente instituída para evitar que o beneficiário disponha do bem de maneira indiscriminada, dilapidando o patrimônio por prodigalidade, incompetência administrativa, inexperiência entre outros. O ilustre civilista Sílvio de Salvo Venosa, observa que: “os bens inalienáveis são indisponíveis. Não podem ser alienados sob qualquer forma, nem a título gratuito nem a título oneroso” [02]. Partindo dessa premissa, podemos conceituar a cláusula de inalienabilidade como um meio de vincular, absoluta ou relativamente, vitalícia ou temporariamente, os próprios bens em relação a terceiro beneficiário, que não poderá dispor deles, gratuita ou onerosamente, recebendo-os para usá-los e gozá-los. Na verdade, ocorre com relativa frequência na realização de doações ou de testamentos a inserção da cláusula de inalienabilidade por imposição daquele que realiza a liberalidade, ou seja, ou do doador, ou do testador. Impende destacar, por necessário, que não há, no entanto um direito real. Na verdade, o que ocorre é um cerceamento ao direito da propriedade, que perde o poder de dispor. Vale registrar que essa cláusula, quando imposta a imóveis, deve ser averbada no registro de imóveis, consoante preceituam os arts. 128 [03],167, II-11 [04] e 247 [05], todos da Lei nº 6.015/63 (Lei de Registros Públicos). Conclui-se, portanto, que a inalienabilidade cria um ônus real sobre a coisa, paralisando temporariamente a possibilidade de transferência do bem que recai sobre o titular do domínio. 3. Dos efeitos da inalienabilidade O efeito primordial da cláusula de inalienabilidade é impedir a alienação do bem gravado a qualquer título: não pode vender, doar, permutar ou dar em pagamento [06]. A inalienabilidade pode ser temporária ou vitalícia. Se temporária, o beneficiário da liberalidade só poderá dispor do bem após transcorrido o prazo determinado na cláusula. Se vitalícia, o beneficiário do bem gravado não poderá, em regra, dispor do bem até a sua morte. Cumpre enfatizar, a respeito desse aspecto do tema, que o art. 1.911 do Código Civil dispõe que a cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica sua impenhorabilidade [07] e incomunicabilidade [08]. Na verdade, tal entendimento, mesmo antes de ser tratado expressamente no Código Civil de 2002, já estava mais do que cristalizado em nossos Tribunais, por meio da Súmula nº 49 [09] do Supremo Tribunal Federal. 4. Das hipóteses de constituição da cláusula de inalienabilidade A cláusula de inalienabilidade, em regra, só pode ser constituída através de doação [10] ou testamento [11], sopesado o fato de que ninguém pode tornar inalienável, e por conseguinte impenhorável, um bem de seu patrimônio, como já advertiu o professor Sílvio Rodrigues [12]. Poder-se-ia perguntar: Qual seria o objetivo do doador ou do testador ao instituir a cláusula de inalienabilidade que viesse a gravar o imóvel? A resposta é bastante previsível, qual seja: garantir a segurança e futuro dos donatários ou dos testamentários, no caso de o herdeiro ser um pródigo (CC, art. 4, IV c/c CC 1782), ou de o mesmo ser acometido de uma incapacidade por doença mental. Seguindo a linha de raciocínio acima exposta, ensina Sílvio de Salvo Venosa: “A imposição de cláusula proibitiva de alienar pelo testador pode vir imbuída de excelentes intenções: receava ele que o herdeiro viesse a dilapidar os bens, dificultando sua própria subsistência ou de sua família; tentava evitar que o sucessor ficasse, por exemplo, privado de um bem para moradia ou trabalho. Como geralmente a cláusula vem acompanhada da restrição da incomunicabilidade, procurava o testador evitar que um casamento desastroso diminuísse o patrimônio do herdeiro. São sem dúvida razões elevadas que, a priori, só viriam em benefício do herdeiro [13]”. Impende observar, neste ponto, que, se o herdeiro necessário vier a falecer, os bens objeto de cláusula de inalienabilidade por ele recebidos passarão aos seus sucessores livres e desembaraçados [14]. 5. Dos problemas advindos da imposição da cláusula de inalienabilidade Não obstante as vantagens acima elencadas a propósito da cláusula de inalienabilidade, a doutrina também vislumbrou várias objeções à mesma (insegurança no campo das relações jurídicas pela intocabilidade do bem e restrição da finalidade natural de todo patrimônio), senão vejamos: “Contudo, não bastassem os entraves que o titular de um bem com essa cláusula tem que enfrentar, como sua aposição podia ser imotivada pelo sistema de 1916, poderia o testador valer-se dela como forma de dificultar a utilização da herança, quiçá como meio de vingança ou retaliação, uma vez que não podia privar os herdeiros necessários à legítima (...) há inconveniência na inalienabilidade porque impede a circulação de bens e obstrui, em síntese, a própria economia da sociedade; é um elemento de insegurança nas relações jurídicas, tantas são as questões que se levantam” [15]. “A inalienabilidade está em oposição com uma lei fundamental da economia política, a que exige a livre circulação dos bens, lei esta que interessa em mais alto grau à riqueza pública, e portanto, toda condição que derroga esta lei é contrária ao interesse geral, e assim ilícita. A cláusula de não alienar estipulada atende ao interesse privado; ora, o interesse dos indivíduos deve ser subordinado ao interesse geral, sob pena de não haver mais vida comum possível. Mesmo que seja a inalienabilidade temporária, e não vitalícia, o interesse geral não pode ser ofendido durante certo tempo” [16]. Tais críticas levantadas pela doutrina fizeram com que o legislador do Código Civil de 2002 [17], restringisse o alcance e a possibilidade de imposição da cláusula de inalienabilidade, consoante se pode perceber pela redação do art. 1.848: “Art. 1848 - Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima”. (grifou-se). Em outras palavras, o Código Bevilacqua, em seu art. 1.723, admitia a imposição dos gravames independentemente de justificativa, ao passo que o novo Código, em seu art. 1.848, inovou a respeito da matéria, condicionando a imposição destes gravames à existência de justa causa. A propósito do mencionado dispositivo legal, assinalam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que: “O CC estabelece a possibilidade de o bem da legítima ser gravado pelo testador com cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, excepcionalmente: apenas incide quando existe justa causa. Em outras palavras, o que determina a validade da cláusula não é mais a vontade indiscriminada do testador, mas a existência de justa causa para a restrição imposta voluntariamente pelo testador. Pode ser considerada justa causa a prodigalidade, ou incapacidade por doença mental, que diminuindo o discernimento do herdeiro, torna provável que esse dilapide a herança” [18]. Nesse rumo de idéias, não sobejam dúvidas de que pelo sistema do Código Civil de 2002 será ineficaz a imposição pura e simples dessas cláusulas, sem sua motivação declarada no testamento. 6. Da possibilidade (ou não) do afastamento da cláusula de Inalienabilidade Para responder à pergunta se é juridicamente possível a extinção da cláusula de inalienabilidade de um imóvel doado[19] ou testado com tal gravame, passemos a analisar os dispositivos legais que tratam sobre o tema: “Art. 1.676 (Código Civil de 1916). A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade”. “Art. 1.911 (Código Civil de 2002). A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade. Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros”. Acaso se faça •••
Carlos Eduardo Jar e Silva (*)