Nuances da judicialização do planejamento sucessório instituído por meio de doação
A implementação de um planejamento sucessório é uma prática que tem sido cada vez mais difundida entre famílias que buscam preservar a continuidade do patrimônio familiar e evitar conflitos quando da transmissão deste patrimônio. Uma ferramenta amplamente utilizada nesse contexto é a doação – contrato pelo qual o titular do bem (ou vantagem), por liberalidade, o transmite para outra pessoa.
Nesse contexto, a doação – acompanhada, na maior parte das vezes, da reserva de usufruto [1] – é utilizada como forma de transição gradual do patrimônio entre gerações, inserindo os herdeiros paulatinamente na realidade econômico-financeira almejada pelo doador.
Há diversas vantagens em se adotar tal estratégia no contexto do planejamento sucessório, como realizar a partilha de bens ainda em vida, antecipando-se a um possível (e usualmente moroso) processo de inventário; gravar o bem com cláusulas de inalienabilidade (que obsta que o donatário possa dispor de tal bem, seja a título gratuito ou oneroso), impenhorabilidade (impossibilitando a penhora do bem) e incomunicabilidade (o que significa que o bem recebido em doação não integra o patrimônio comum do casal ao qual integra o donatário), além de permitir sejam estipuladas questões atinentes à percepção dos frutos.
Eficácia do planejamento sucessório
Embora sejam várias as questões que possam ser avençadas no âmbito da doação – e, mais especificamente, no âmbito do planejamento sucessório – à luz da autonomia privada, há outras que são inegociáveis, pois o Direito das Sucessões comporta determinadas normas cogentes ou de ordem pública e precisamente estipuladas que, paradoxalmente, podem levar a interpretações distintas, gerando controvérsias que, em tese, não deveriam se verificar dado o caráter de tais normas.
Dessa forma, para garantir a eficácia do planejamento sucessório é primordial que sejam assegurados os direitos de todos os herdeiros necessários do doador, sob pena de serem extirpadas as estratégias para estruturação do patrimônio de acordo com a sua vontade, ante a possibilidade de nulidade do ato de liberalidade em questão ou, ao menos, a sua redução.
A esse respeito, o Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) estipula que os herdeiros necessários – assim compreendidos os descendentes, ascendentes e cônjuges – têm direito à “legítima”, “composta por metade do patrimônio do autor da herança” [2]. Os tribunais pátrios têm entendido que o alcance da norma resguarda também os direitos do filho cuja paternidade foi reconhecida posteriormente à data da liberalidade, notadamente porque tal reconhecimento “(…) tem natureza meramente declaratória, ou seja, em razão da filiação, o autor já possuía direito à legítima, antes mesmo de lhe ser declarado” (TJ-SP, Ap. 1000287-88.2016.8.26.0129, 5ª Câmara de Direito Privado, desembargador relator Fábio Podestá, j. em 21/9/2017). Em se tratando de reconhecimento de paternidade a posteriori via judicial, isso “produz efeitos ex tunc, pois a sentença de reconhecimento de paternidade é meramente declaratória. Não é ela que constitui a paternidade; esta lhe é preexistente” [3].
Todavia, como toda temática complexa, há patente controvérsia a respeito, visto que o próprio Tribunal de Justiça de São Paulo já se pronunciou em sentido diverso do acima, salientando que “a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, sem constituir ao autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retro operante alcançar os efeitos passados das situações de direito” [4].
Valoração do patrimônio e prescrição
Seja como for, se a doação exceder os limites legais – isto é, se verificado avanço na legítima –, ela será nula quanto à parte que exceder àquela da qual o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor. Disso emerge outra problemática, decorrente da valoração do patrimônio do doador (prova difícil de ser feita, sobretudo se a doação tiver ocorrido anos antes da abertura da sucessão [5]).
Outro ponto é que, se o ato de liberalidade estiver eivado de nulidade, a rigor, ele não se convalida com o decurso do tempo, de tal sorte que, em tese, a pretensão de declaração de nulidade – a ser exercida por eventual interessado que tenha sido prejudicado com o ato praticado (a exemplo de um herdeiro que pode ter recebido parcela menor do que lhe seria devido considerando a porção legítima) – não pode ser alcançada pela prescrição ou decadência. Nada obstante, os tribunais pátrios têm entendido pela incidência da prescrição decenal sobre as pretensões declaratórias de nulidade de doação inoficiosa, tendo, inclusive o Superior Tribunal de Justiça já se manifestado a esse respeito [6].
Termo inicial
A partir desse entendimento, emerge mais uma problemática: qual seria o termo inicial do prazo prescricional? De todas as questões que podem orbitar acerca da doação, essa nos parece a mais delicada porque se, por um lado, é assente que não existe herança de pessoa viva, por outro, admite-se que o interesse de agir do herdeiro prejudicado não fica condicionado ao falecimento, podendo eventual demanda ser ajuizada em vida do doador, tendo por termo inicial a data do negócio jurídico impugnado, segundo entendimento firmado no STJ [7].
Há, no entanto, entendimento diverso, de que a ação para questionar as doações somente deve ser ajuizada após o falecimento do doador, visto que, antes disso, há apenas expectativa de direito – sendo vedado qualquer pleito envolvendo herança de pessoa viva [8]. Ou, ainda, para os herdeiros que obtiverem o reconhecimento de paternidade judicialmente, somente com o trânsito em julgado da sentença em que reconhecida sua condição de herdeiro é que se inicia o prazo para questionar as doações efetuadas [9].
Conclusão
Dentre tantas discussões que podem gravitar em torno da doação, o ponto conclusivo é pela imprescindibilidade de que seja realizada com extrema cautela aos limites legais, sob pena de resultar na impugnação do ato em juízo pelo herdeiro potencialmente lesado, fazendo com que o objetivo de segurança e celeridade ao se implementar um planejamento sucessório não só não se concretize como, pior, cause o resultado reverso.
Não bastassem todas as nuances polêmicas, o assunto é delicado porque, em última análise, requer que o titular do patrimônio venha a se debruçar sobre circunstâncias que se verificarão quando ele faltar definitivamente. Se, por um lado, esse momento não deveria mais lhe preocupar, por outro, é certo que, depois do fim, a vida continuará para os seus entes queridos; a reforçar o sentido de se fazer um bom planejamento quanto à destinação de seus bens em sua ausência.
[1] Com a instituição do usufruto, há “a divisão igualitária dos atributos da propriedade entre as partes envolvidas” (Cf. Flávio Tartuce, In: Manual de Direito Civil, vol. único, 11ª ed., 2021, p. 1.868); o usufrutuário (doador no contexto do planejamento sucessório mencionado) tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos (art. 1.394 do Código Civil), embora o nu-proprietário (donatário) seja o dono da coisa, que pode dela dispor – aliás, diz-se “nu-proprietário” porque, a ele, cabe a propriedade despida de tais direitos.
[2] Cf. Flávio Tartuce, Direito Civil: Direito das Sucessões. v.6, 16ª ed., Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023, p. 28.
[3] Cf. Milton Paulo de Carvalho Filho, Código Civil Comentado, coordenação de Cezar Peluso, 6ª ed. Barueri: Manole, 2014, p. 1.811.
[4] AP 1035654-20.2021.8.26.0576, 7ª Câmara de Direito Privado, Des. Miguel Brandi, j. em 15/12/2023.
[5] Uma forma de mitigar os riscos de possível discussão é mediante a elaboração, concomitantemente à doação, de um laudo de avaliação do bem/do patrimônio do doador.
[6] AgInt no REsp 2.037.607/SP, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, j. em 18/9/2023
[7] AgInt no AREsp 1.915.717/SC, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, j. em 17/10/2022
[8] “Até a abertura da sucessão, os filhos que se insurgirem contra a doação dos pais a outro filho tem mera expectativa de direito, sendo defeso litigar sobre herança de pessoa viva (art. 1.089, CC)” Cf. Arnaldo Marmitt, Doação, Rio de Janeiro: Aide Editora, 1994, p. 66.
[9] TJSP, AI 2069858-84.2023.8.26.0000, 4ª Câmara de Direito Privado, Desª. Marcia Dalla Déa Barone, j. em 18/5/2023.