Condomínios residenciais: a inveja estimula conflitos
Inveja estimula conflitos em condomínios e influencia na votação em assembleia, mas o Código Civil oferece soluções
Kênio de Souza Pereira*
Em um mundo com tantos conflitos ficamos surpresos com algumas maldades que, à primeira vista, são inexplicáveis, especialmente quando praticadas por nosso vizinho em condomínios residenciais, onde se espera maior colaboração e solidariedade. É comum para aquele que pratica o ato malicioso utilizar justificativas ilógicas ou confusas, pois, em geral, o invejoso não tem coragem de assumir a real motivação de sua ação, sendo uma de suas principais características a covardia. Ele distorce os fatos, cria situações confusas e quando indagado para explicar detalhadamente, por escrito, a razão da atitude, que pode às vezes, configurar injúria, difamação ou calúnia, foge do assunto e não assume o que disse. Ele tem pavor de registrar a sua má-fé.
Numa sociedade consumista e competitiva é um desafio conviver com determinadas pessoas em um condomínio ou no trabalho, onde alguns não sabem disputar, aplaudir o sucesso alheio ou respeitar o próximo.
Se o invejoso fosse facilmente identificável, ninguém se arriscaria a morar no mesmo edifício, já que este, quando resolve assumir funções de destaque ou participar efetivamente de uma coletividade é capaz de criar situações insuportáveis para sabotar a convivência.
Com o aumento dos empreendimentos de grande porte, compostos por centenas de apartamentos, lojas ou salas, torna-se imperioso que todos os pedidos, reclamações ou sugestões sejam endereçados por escrito, cabendo ao administrador, síndico, condômino, morador ou ocupante o dever e a elegância de dar recibo na cópia como protocolo para evitar mal entendidos decorrentes da comunicação verbal.
Sucesso incomoda
A situação é tão grave, que há pessoa que tem medo de se destacar profissionalmente em alguns locais, pelo risco de se tornar vitrine e passar a receber pedradas. Por isso, é comum a maioria dos condôminos ter receio de assumir a função de síndico ou aceitar qualquer cargo na administração do prédio, pois ficará em evidência, podendo colher frutos negativos de sua atuação em defesa da coletividade. Há casos de síndico que promove melhorias, mas essas, por melhor que sejam e apesar de valorizarem o patrimônio coletivo, são criticadas duramente por um ou outro, havendo até insinuações contra a sua honestidade e lisura. O crítico visa denegrir o bom desempenho do gestor, de forma a desvalorizá-lo, sendo que rotineiramente, este é justamente aquele que nunca participa da assembleia ou que vota contra qualquer proposta. Oscar Wilde cita que “o número dos que nos invejam confirma as nossas capacidades”.
Em maio de 2014, numa palestra ministrada pelo criador da Embraer, em Belo Horizonte-MG, Osires Silva, com sua sabedoria e experiência dos mais de 80 anos de vida, falou que ficava intrigado pelo Brasil não ter nenhum prêmio Nobel, pois quase todos os países, inclusive na América do Sul, têm personalidades que o conquistaram desde 1901, quando foi instituído para estimular o desenvolvimento humano em várias áreas.
Numa conversa com os suecos da entidade que concede o prêmio, após insistir muito, ouviu a explicação: “Quando um profissional de qualquer país se candidata ao Nobel, todos os órgãos e autoridades do país fazem de tudo para promover o seu patrício. Mas, quando o candidato é brasileiro, as autoridades do Brasil fazem de tudo para derrubá-lo. Vocês brasileiros são os maiores destruidores de heróis deste planeta”. Fica evidente que há algo estranho em nossa cultura, que a maioria se nega a confessar, mas que não vacila para desvalorizar o próximo.
Magistrado agiu de forma inconfessável para impedir rateio justo do condomínio
Em 2010, a proprietária de um apartamento de cobertura me contratou para alterar a cobrança da taxa de condomínio pela fração ideal, pois ela pagava 68% a mais que o apartamento tipo, apesar de utilizar igualmente todos os serviços, porteiros, faxina e demais equipamentos das áreas comuns que geram as despesas rateadas.
O condomínio, como réu, lutou para que não fosse realizada a perícia judicial, pois o engenheiro perito, como em todos os casos semelhantes, facilmente provaria que as despesas das áreas comuns são geradas e usufruídas igualmente, independentemente do tamanho do apartamento, seja ele tipo, térreo ou de cobertura. Só que no referido edifício reside um Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que vamos chamar de “bigode”, condômino do apartamento tipo, que em outro caso, no ano de 2008, em votação unânime, num processo em que o apartamento maior pagava 131% a mais que os tipos, entendeu que o rateio deveria ser igualitário, ou seja, julgou contra a aplicação da fração ideal.
Pois bem, no processo de 2010, o juiz “a quo” indeferiu a realização da prova pericial, mesmo diante da insistência da autora em pagar o perito judicial, pois o direito à ampla defesa é um princípio constitucional, sendo que a realização da prova contribui para um julgamento mais acertado. É lamentável, mas às vezes, vemos juízes preocupados em julgar por atacado, deixando de aprofundar na matéria que exige a atuação de um perito que elucide aspectos complexos. No final, ele julgou a ação improcedente, sob o argumento infeliz de que a convenção pode estipular tudo, até mesmo ferir os artigos 157, 884 e 2.035 do Código Civil, os quais proíbem cláusulas que lesem ou criem situação de enriquecimento ilícito. Pelo visto o juiz de 1º grau confundiu a convenção com a Constituição Federal.
Diante disso, a autora interpôs recurso de apelação, tendo o Desembargador Relator, já experiente diante do fato de já ter julgado outras causas semelhantes, proferido o voto para igualar as taxas de condomínio. O Relator desconsiderou o pedido preliminar de realização da perícia, pois já tinha pleno domínio da tese que defendo há quase 20 anos, de que a fração ideal foi criada para dividir despesas de construção e não de uso e gozo das áreas comuns, pois essas são utilizadas igualmente. Ocorre que, o Desembargador “bigode”, que reside no edifício da autora, fez uma tremenda pressão sobre os Desembargadores Revisor e Vogal do processo, para negar provimento ao recurso de apelação. Assim, minha cliente perdeu o processo, o qual está em vias de ser remetido ao STJ mediante a interposição do Recurso Especial.
Após esse histórico, posteriormente chegou às minhas mãos uma ata da assembleia geral, tendo seu teor me chocado, pois nela consta que a proprietária da cobertura, autora da Ação Declaratória proposta em 2010, que não compareceu, mas solicitou que fosse igualada a taxa de condomínio dela com o valor cobrado do apartamento tipo. Nesta ata elaborada no dia 16 de setembro de 2011, portanto, depois que a proprietária da cobertura propôs, no dia 1ª de dezembro de 2010, a Ação Declaratória, o Desembargador “bigode” fez constar literalmente, a pedido dele, que como alternativa para reduzir a taxa de condomínio injusta, se dispunha a comprar a vaga de garagem que a cobertura tem a mais que as demais unidades, conforme documento assinado pelo magistrado. Assim, o “bigode” se propôs a pagar um valor insignificante a mais de taxa sobre as vagas que ele adquirisse, tendo alegado que seria um negócio muito bom para reduzir a taxa da cobertura que era 68% maior que a paga pelo apartamento dele. Pelo visto, ele tem dois pontos de vista sobre o que seja justo e legal, pois num processo que julgou em 2008 eliminou a cobrança de 131% a mais sobre a unidade com maior fração ideal, fundamentando tudo numa perícia judicial e em 16/09/11, ao analisar o caso do edifício onde mora ignorou o que era justo para forçar que a proprietária da cobertura lhe vendesse uma vaga de garagem. E, ao não ter sua pretensão atendida de comprar as vagas de garagem, quando a vizinha/autora interpôs a apelação no TJMG, foi atrás dos colegas Desembargadores para induzi-los a julgar contra sua vizinha.
Porque ele mudou de ideia? Como entender essa mudança radical de posição, se em 2008, em outro processo, o “bigode” e os demais dois Desembargadores eliminaram a cobrança a maior de 131% e igualaram as taxas de todas as unidades tipo com a outra bem maior? E ainda, condenaram o Condomínio/Réu a devolver ao autor o que cobrou a mais nos últimos dez anos, sendo que no acórdão unânime foram reproduzidos vários quesitos da perícia judicial que comprovaram ser o rateio igualitário justo e matematicamente perfeito.
Assim, passamos a entender a razão de existir acórdãos tão estranhos. Felizmente, caso como esse é exceção e isso não me faz desacreditar na Justiça.
Não querer que o outro tenha
O pai da neurociência moderna, Ramón Cajal, explica que “a inveja é tão vil e vergonhosa que ninguém se atreve a confessá-la”. Por isso, é importante identificarmos o invejoso, pois ele não se limita a desejar o que o outro tem ou conquistou. Zuenir Ventura menciona no livro “O mal secreto” que “ciúme é querer manter o que se tem; cobiça é querer o que não se tem; inveja é não querer que o outro tenha”. Assim, o invejoso não se limita a ficar triste pelo bem alheio, mas tem prazer pelo mal que pode causar ao próximo.
Código Civil pode ser utilizado contra inveja – casos com garagem
Em um edifício cada um dos 20 apartamentos tinha apenas uma vaga de garagem, mas um do proprietário teve a sorte de sua vaga ter dimensões maiores, o que possibilitava estacionar dois carros. A assembleia geral aplicou uma multa contra este proprietário que guardava dois automóveis dentro dos limites de sua vaga da garagem, pois os demais vizinhos estavam revoltados porque não conseguiam fazer o mesmo nas demais vagas. De nada valeu o argumento de que o dono do apartamento foi beneficiado acidentalmente por terem as pilastras do edifício sido posicionadas de forma a possibilitar um espaço maior na sua vaga.
Mediante a perícia judicial, o juiz invalidou a multa e garantiu o direito de estacionar o segundo carro. Ficou provado que numa construção primeiramente o arquiteto elabora a planta, onde são desenhadas as vagas de garagem. Posteriormente à aprovação do projeto na prefeitura é realizado o projeto estrutural, sendo que o engenheiro calculista, às vezes, redefine os locais e dimensões dos pilares, os quais podem ainda ser alterados no momento da execução da obra.
Essa situação explica porque às vezes surge vaga que possui dimensão maior que as demais. A aplicação de multa ou restrição só teria sentido se o segundo veículo invadisse as áreas de manobras ou atrapalhasse o uso das vagas vizinhas, nos termos do art. 1.336 do CC. O espaço da vaga é propriedade exclusiva, podendo ser utilizada dentro de sua capacidade nos termos do art. 1.335, sendo ilegal a restrição se não ocorre prejuízo aos demais moradores que não tiveram esse benefício acidental.
Em 17 de setembro de 2008 uma forte chuva de granizo danificou centenas de automóveis em Belo Horizonte-MG. Numa assembleia de um edifício com 24 vagas (2 por apto), sendo 19 cobertas e 5 localizadas num pátio nos fundos do prédio, foi solicitado pelos proprietários das 5 vagas que tiveram os carros danificados, que o condomínio os autorizasse a cobrir as vagas, sendo a despesa desta obra assumida somente por eles. Estranhamente, alguns vizinhos votaram contra, tendo alegado que se melhorasse o apartamento do vizinho e o deles seria desvalorizado. Como? Até hoje não entendi a falta de solidariedade! É óbvio que cobrir uma vaga de outro apartamento não desvaloriza quem já tem as duas vagas cobertas. A obra não afetaria nem a fachada e não causaria nenhum prejuízo aos apartamentos que têm vaga coberta. Provavelmente, se os proprietários prejudicados acionassem o Poder Judiciário, poderiam obter ganho de causa mediante a validação da aprovação da obra que obteve o quórum da maioria e não de 2/3 como prevê a convenção.
Ver o outro melhor incomoda alguns vizinhos
O proprietário de uma casa sentiu-se incomodado com a família vizinha que passou a se divertir com a nova piscina. Por não suportar a felicidade da família que se reunia para tomar sol, elevou o muro da divisa para 7 metros de altura e assim tampou o sol que incidia na piscina. Disse que era seu direito, pois a Lei de Uso e Ocupação do Solo permitia essa altura. Felizmente, a família foi bem assessorada juridicamente e conseguiu uma ordem judicial para que o muro fosse reduzido para 3 metros, altura essa suficiente para garantir a segurança, pois muro de 7 metros é difícil de encontrar até em penitenciárias. O Poder Judiciário aplicou contra o invejoso, o art. 187, do CC, que estabelece: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Essa história me faz lembrar os proprietários do apartamento tipo que alegaram que o dono da cobertura tinha que pagar a taxa de condomínio 80% a mais porque tinha o privilégio de tomar sol na piscina. Outro defendeu o rateio pela fração ideal contra o proprietário do apartamento térreo com o argumento de que este tinha flores que só ele podia apreciar. Pelo visto, para alguns, o sol e as flores não nascem para todos, mas felizmente a melhor condição do próximo só incomoda a minoria.
Perseguição ao apartamento térreo
Outro caso estranho foi o fato de um síndico, apesar de constar nos registros dos apartamentos e na convenção que o apartamento térreo tinha direito de uso exclusivo da área dos fundos, ter requerido em juízo essa área para o condomínio, pois nela existia um lindo jardim. O Juiz, ao despachar a petição inicial, refletiu sobre o absurdo e julgou o mérito de imediato, antes mesmo de citar o réu, diante da má-fé do síndico que tentou tomar a propriedade alheia, adquirida regularmente.
Mas isso não bastou, pois o síndico revoltado, simplesmente passou a cobrar a taxa de condomínio em dobro do apartamento térreo, alegando que o jardim consumia muita água, apesar do casal permanecer seis meses em cada ano na Alemanha, o que resultava num consumo de água semelhante ao restante dos apartamentos. Até aquele momento o térreo sempre tinha pago o valor igual as demais unidades tipo. O casal, com medo de tanta perseguição, pagou 100% a mais da taxa durante 8 anos, contrariando a convenção que previa o valor igualitário. Somente em 2012, ao saber dos seus direitos, o casal entrou com o processo em juízo, o que resultou no restabelecimento do rateio igualitário e instalou um hidrômetro destinado ao jardim. Passado alguns meses, ficou provado que o consumo de água de todas as unidades é praticamente igual.
Nova obra não pode gerar danos
O fato do apartamento térreo ter uma área externa muito ampla incomodava os vizinhos de um prédio com 5 unidades, sendo que todas tinham 2 vagas de garagem cada. Os quatro condôminos dos apartamentos tipo aprovaram na assembleia uma nova obra que cobria as laterais do edifício, onde seria instalada 5 novas vagas apenas para os apartamentos tipo, pois estes alegavam que o térreo já tinha uma área maior e que poderia fazer outras vagas na mesma. A nova laje reduziria a ventilação e a luminosidade do apartamento térreo a ponto dos moradores terem que permanecer com as luzes ligadas o dia todo. O proprietário do apartamento térreo entrou na Justiça e alegou que a inovação geraria dano ao seu patrimônio, com base no art. 1.342 do CC “A realização de obras, em partes comuns, em acréscimo às já existentes, a fim de lhes facilitar ou aumentar a utilização, depende de dois terços dos votos dos condôminos, não sendo permitidas construções, nas partes comuns, suscetíveis de prejudicar a utilização, por qualquer dos condôminos, das partes próprias, ou comuns”.
O juiz ao analisar que a obra realmente desvalorizaria a unidade térrea e que era estranho os quatro proprietários das unidades tipo se recusarem a permitir que o térreo tivesse também uma das cinco vagas, acabou por impedir que a obra nova fosse realizada.
Engenhosidade para sabotar o próximo
O invejoso cria situações inconfessáveis nos condomínios, em comunidades na internet, sindicatos e associações, sendo mais criativo quando possui cursos superiores e boa oratória, pois utiliza seu conhecimento para o mal, de maneira engenhosa e articulada.
Não há nada de errado em desejar ser como alguém talentoso, que obteve sucesso e se esforçou para ser reconhecido, pois desejar melhorar de vida e espiritualmente é uma qualidade. O problema é quando a pessoa assume uma postura patológica, que gera danos até aos seus parceiros que não percebem sua verdadeira motivação, pois gasta sua energia para perseguir quem deseja ser, a ponto de envolver a coletividade em suas fantasias e delírios.
Ao refletirmos sobre algumas situações passamos a entender a razão de alguns vizinhos agirem de forma a prejudicar o outro, mesmo que sua anuência numa deliberação na assembleia não lhe cause qualquer incômodo ou prejuízo. Simplesmente, há pessoas que têm o prazer de evitar que seu vizinho obtenha qualquer benefício, o que é lamentável num condomínio onde todos deveriam se ajudar em prol de uma convivência harmoniosa e saudável.
* O autor é Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-MG. Conselheiro da Câmara do Mercado Imobiliário de MG e do SECOVI-MG. Representante em MG da Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário. Diretor da Caixa Imobiliária Netimóveis – BH-MG.